A GENEALOGIA DAS LÍNGUAS

Mais difícil do que deduzir o termo moderno a partir da raiz antiga é percorrer o caminho inverso e remontar de um termo moderno à sua origem, mesmo com o conhecimento das regras da transformação. Alguns dos sons originais caem ou se confundem com outros e nem sempre é fácil descobrir qual das possibilidades é a correta. Por exemplo, de que palavra latina vem "pena" em português? Na verdade, vem de duas: pena como castigo vem do latim poena; enquanto pena de ave vem do latim penna.

Se o latim tivesse sido totalmente esquecido e seus textos perdidos, seria um tanto difícil descobrir isso. Mas a comparação com outras línguas latinas, com outras regras de derivação pode ajudar: por exemplo, em italiano, o castigo é "pena" e a pena de ave é "penna", com uma pronúncia mais enfática do "n", o que indica origens distintas e dá pistas para adivinhá-las.

Seguindo essa lógica, é possível demonstrar se diferentes línguas são aparentadas, ou seja, se descendem da mesma origem. Também é possível distinguir semelhanças que são realmente "de família" - aquelas que são encontradas em várias línguas e seguem regras paralelas - daquelas que são originárias de empréstimos recentes, ou meras coincidências.

Na maioria dos casos, são meras coincidências as que fazem a alegria dos "lingüistas" amadores, que se esforçam por "provar" que certos indígenas das Américas descendem de povos históricos do Velho Mundo (hebreus, fenícios, vikings, gregos...) ou ao menos tiveram contatos intensos com eles.

Por exemplo, a semelhança entre jouer (francês) e giocare (italiano), apesar de pouco óbvia, é significativa, pois semelhanças análogas em muitas outras palavras que evidenciam uma regra. Já a semelhança entre o grego theos e o náhuatl (asteca) teotl - ambas significando "deus" -, parece bem mais flagrante, mas não é significativa, pois não há outros paralelos semelhantes entre as duas línguas. Não se pode sequer postular um empréstimo, a menos que fossem encontradas mais palavras de origem aparentemente grega no náhuatl ou vice-versa. É coincidência, pura e simples.

Por outro lado, se houver quantidade suficiente de dados e variações suficientes de línguas e dialetos realmente aparentados a partir dos quais trabalhar, é possível tentar deduzir - ao menos em parte e hipoteticamente - a língua desaparecida da qual derivaram. Os bárbaros germânicos que viveram no extremo norte da Europa antes de saírem para invadir o Império Romano não tinham escrita para registrar a língua que falavam, mas a partir da comparação entre as diferentes línguas germânicas a que deram origem (alemão, inglês, dinamarquês, sueco, norueguês, frísio, islandês etc., além de línguas desaparecidas mas registradas por escrito, como o gótico e o norueguês antigo), é possível reconstituir em parte uma matriz lingüística comum.

Juntando-se dados históricos e pistas arqueológicas sobre os antigos germânicos, considerando-se as mudanças registradas desde que suas línguas começaram a ser escritas (século IV d.C. para o gótico) e comparando-se a quantidade das mudanças anteriores com as de épocas mais recentes e de outras línguas cuja história é mais conhecida, como as neolatinas, pode-se também - com certa margem de erro, é claro -, estimar a data em que a desaparecida língua original, o "proto-germânico", se dividiu nos dialetos que originaram as línguas germânicas modernas (um pouco antes de 250 a.C.).

Mas também as línguas germânicas e neolatinas têm traços em comum. Alguns deles se devem a empréstimos mútuos. Por exemplo, o termo português "futebol" veio do inglês no século XIX e o termo inglês "marmalade" veio do português (por intermédio do francês) no século XV.

Há empréstimos que são milenares, ou quase: há no inglês, por exemplo, milhares de palavras de origem francesa trazidas a partir de 1066, quando os normandos invadiram a Inglaterra. Os nomes de carnes de açougue, como pork, mutton e beef, são de origem francesa, ao passo que os nomes dos respectivos animais são anglo-saxões (germânicos): pig (porco), sheep (carneiro) e ox (boi) ou cow (vaca) - provavelmente porque os animais eram criados por servos anglo-saxões, mas consumidos por nobres normandos.

Por sua vez, muitas línguas latinas incluem palavras trazidas pelos invasores germânicos na época em que estes derrubaram o Império Romano, por volta do século V. Por exemplo, "alvo" em português, é de origem latina, mas seu sinônimo "branco" vem do germânico blank - "reluzente" ou "brilhante", em alemão moderno. Os bárbaros de origem germânica também trouxeram ao português muitas palavras de teor militar - por exemplo "guarda", aparentada ao inglês ward.

Mas também há semelhanças entre línguas germânicas e latinas que não são empréstimos - estão presentes já no latim ou no proto-germânico - e que são numerosas e sistemáticas demais para se cogitar de coincidência. Por exemplo, não é por coincidência, nem por empréstimo, que há semelhanças entre father (inglês) e pater (latim), entre mother e mater, entre salt e salis. Isto de fato aponta para uma origem comum, muito mais remota que o latim.

A natureza desse parentesco, entretanto, só começou a ser compreendida durante o Iluminismo. Antes, a maioria dos eruditos, com base no Gênesis, acreditava que a humanidade originalmente falava hebraico (pois Adão dá nomes hebraicos para os animais, para si mesmo e para a mulher) e as outras línguas foram criadas no episódio da torre de Babel.

No século XVIII, porém, o início do estudo erudito das línguas da Índia, principalmente de sua mais antiga língua sagrada, o sânscrito, mostrou que esta língua tinha muito mais semelhanças com várias línguas européias do que o hebraico. Por exemplo, o sânscrito pitar (pai) lembra o latim pater, ao contrário do hebraico av; o sânscrito rajan (rei), o latim regis, bem diferente do hebraico melek. Havia também inesperadas semelhanças entre a mitologia hindu e alguns dos mais antigos mitos gregos, romanos, celtas e nórdicos.

O primeiro a constatar essas analogias, o poeta e jurista inglês William Jones em 1788, intuiu a conclusão correta, apesar da insuficiência de seu conhecimento lingüístico e da falta de uma análise mais sistemática: o sânscrito e as principais línguas européias têm uma origem comum.

Entretanto, sua hipótese tornou-se mais conhecida por meio do escritor, diplomata e historiador Friedrich Schlegel que, fiel ao espírito do romantismo, tirou conclusões mais arrojadas e perigosas, menos sólidas e menos verdadeiras.

Em um curso de 1805, Schlegel afirmou que "tudo, absolutamente tudo, é de origem indiana": até o Egito, para ele, havia sido uma colônia da Índia. Pintou um quadro fantasioso de um povo superior que desceu do norte da Índia para erguer todas as civilizações do Ocidente e lhe deu o nome de "ariano" e passou indevidamente de um provável parentesco de língua para conclusões sobre o parentesco de raça.

Arriscou, neste caso em erro, que o nome "arya" que antigos persas davam a si mesmos e os hindus a suas castas superiores - e que já era usado por historiadores e eruditos ocidentais como um nome genérico para os povos indo-iranianos - deu origem a termos ocidentais como Ehre (honra, em alemão), aristos (melhor, em grego) e Eire (nome nativo da Irlanda) e que, portanto, era o nome genérico da "raça" originada da Índia.

Como disse o historiador russo Leon Polyakov no seu estudo O Mito Ariano, Schlegel não era um proto-nazista, nem um germanomaníaco: pelo contrário, militava pela emancipação dos judeus e casou-se com uma filha do filósofo judeu Moisés Mendelssohn. Entretanto, o fascínio do mito de um povo superior originado do Oriente incendiou a imaginação de chauvinistas europeus e, mais notavelmente, dos alemães.

Já no início do século XIX, o uso do termo "ariano" para se referir ao conjunto dos povos que falam línguas aparentadas com as européias e indianas foi rejeitado por lingüistas com um enfoque mais científico e, no início do século XX, já havia sido abandonado pelo mundo acadêmico.

Alguns usaram o termo "ário-europeu", mais justificável, mas que caiu em desuso. O alemão Franz Bopp, o primeiro lingüista a comprovar o parentesco estrutural entre essas línguas por meio do estudo de suas regras de derivação, preferiu o termo "indo-europeu", cunhado por Thomas Young em 1816, hoje usado por todos os lingüistas - embora seus colegas alemães preferisse "indo-germanos".

A confusão entre língua e raça foi condenada pelos lingüistas sérios: Max Müller, um dos maiores estudiosos do assunto em seu tempo, escreveu em meados do século XIX que "para mim, um etnólogo que fala de raça ariana, sangue ariano, olhos e cabelos arianos, comete um pecado tão grave quanto um lingüista que falar de um dicionário dolicocéfalo (de cabeça comprida) ou uma gramática braquicéfala (de cabeça redonda)". Ainda assim, o mal-entendido enraizou-se nessa ciência delirante que veio a ser a "antropologia racial".

Ainda voltaremos a esse assunto, mas por ora ficaremos com a conclusão de que é real o parentesco lingüístico (não racial) entre a maioria das línguas do norte da Índia, Bangladesh, Paquistão, Afeganistão e Irã e a maioria das línguas da Europa. Na Europa, as principais exceções são o basco, o húngaro, o finlandês e o estoniano, além de várias línguas faladas por minorias na Rússia.

Com as técnicas aprendidas no estudo de subfamílias como a neolatina, mostrou-se a existência de regras de derivação paralelas que deram origem ao latim, ao sânscrito, ao grego, ao proto-germânico e outras línguas antigas a partir de um hipotético ancestral comum, chamado (pelos lingüistas mais cuidadosos) de proto-indo-europeu e que provavelmente foi de fato falado em algum momento da pré-história do Velho Mundo.

Já em 1868, o alemão August Schleicher sentia-se suficientemente confiante em sua reconstrução para escrever uma pequena fábula em "proto-indo-germânico". Houve muitos avanços desde então, mas uma reconstituição feita no final do século XX é suficientemente parecida com a de Schleicher para soar como outro dialeto da mesma língua. Nesse aspecto, já se estava no caminho certo.

Texto: Antonio Luiz Monteiro Coelho da Costa

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