Zico 60 Anos
O maior de todos os heróis da galeria de ídolos rubro-negros ainda lembra muito o jogador que levou o clube às maiores glórias. Aos 60 anos, mantém o espírito, a sagacidade, o olhar atento e crítico. E, ao revisitar o passado, exibe a sabedoria de quem se aprimorou com ele. Aqui, Zico fala com serenidade sobre momentos marcantes e dolorosos, sobre amigos e outros nem tanto. Sempre com a elegância de um eterno camisa 10.
O futebol deixou marcas no seu corpo?
Só o problema do joelho. Mas, pela minha disciplina de recuperação, eu ainda consigo jogar bola. O resto do corpo responde bem. Na época, fiz uma cirurgia diferente do que se faz hoje. Não tenho ligamento cruzado. Hoje, se coloca um novo. Como eu não tenho, preciso reforçar a musculatura. Se eu deixo de fazer musculação, o joelho se desloca, incha, dá dor. Se eu jogo em campos bons, gramados, termino bem. Se eu correr e andar em piso duro, sinto bastante. Dói muito.
E que marcas a vida te deixou nestes 60 anos?
Nessa hora vêm à cabeça família, Quintino, Flamengo, seleção, Japão, Turquia. Tudo que me marcou muito. Chega uma data como essa, vêm amigos de Quintino, mensagens da Itália, do Japão, da Turquia... Lembro o que aprendi com a educação rígida do meu pai e, no fim, vejo que a disciplina vale a pena. Todos os filhos deram a ele orgulho como cidadãos, com valores morais. Todos se formaram. Eu ia para a alfaiataria do meu pai e via o capricho na hora de fazer um terno. Enquanto cada corte não ficasse perfeito, ele não entregava. Podia levar uma semana para fazer um terno, podia fazer quatro ou cinco vezes, mas entregava perfeito. Foi o legado que recebi.
Seu pai transmitiu o amor ao Flamengo...
Ensinou todos a amarem o Flamengo, dava uniforme, tudo lá em casa era vermelho e preto. Ele foi um dos primeiros a comprar título de sócio proprietário do clube. E, de repente, eu, o último filho, pude jogar e dar certo no Flamengo, me tornar ídolo do time dele. Cheguei à seleção brasileira, joguei Copa do Mundo. Aí você vai para o Japão, é recebido de braços abertos, e hoje o país é realidade, é o principal do continente asiático. Você começa tudo do zero, consegue resultados, títulos, os caras te amam. São coisas que ficam.
Você conseguiu no futebol muito mais do que sonhava o menino magrinho que chegou ao Flamengo?
O que eu queria era só jogar pelo Flamengo, vestir a 10 do Dida, só isso. Tudo que veio depois foi lucro. E só sosseguei depois de vestir a 10 no profissional. Joguei com a 9, a 7, a 11. O Doval não dava brecha, foi um sufoco. Mas quando eu peguei, ninguém tirou mais.
O início foi muito difícil?
Lembro que, quando o Celso Garcia (radialista já falecido) me levou para o Flamengo, fiquei apreensivo. Fui no dia errado. Ele achou que estava me levando à escolinha e acabei indo ao treino do juvenil. Eu tinha 13 anos no treino do pessoal de 17, a bola era maior do que eu. E o Celso aumentou, diz que botei bola no meio das pernas dos outros. Não teve nada disso (risos). Peguei poucas vezes na bola, mas voltei no dia seguinte pro treino do pessoal da minha idade, na escolinha. Aí pude mostrar quem eu era. No dia seguinte ao meu primeiro jogo, o Ayer Andrade (funcionário do clube) já me inscreveu na federação. Meu pai até ficou chateado, porque ele teve um problema assim com o Edu, por causa de contrato de gaveta. Na época, após ser inscrito, você precisava de dois anos para poder mudar de clube. E se não desse certo? Mas comecei a bater recordes na escolinha e foi nesse período de dois anos que começaram a pensar em fazer o trabalho de fortalecimento muscular comigo. Hoje, se eu chegasse num clube, nem com pistolão me deixariam treinar. Era muito magrinho. Tipo o Rafinha hoje. Saía às 6h de Quintino, treinava às 8h30m. Saía da Gávea para o Centro, para entrar na escola às 12h e estudar até as 17h. Pegava ônibus para a academia, no Leblon. Ficava até 19h30m e pegava outro ônibus para Quintino.
Até mesmo a formação da sua família teve a ver com o futebol...
Eu comecei inspirado pelos meus irmãos, que já jogavam. Já estava preparado para muitas coisas no mundo do futebol. E foi numa das viagens da escolinha que eu conheci a Sandra. Fomos para um jogo em Friburgo, e o Edu levou a namorada dele que, por sua vez, levou a irmã, a Sandra. Na volta, no carro, saiu o primeiro beijo. Eu tinha 17 anos, ela era vizinha nossa, em Quintino. Nesse período de treinos, de trabalho de fortalecimento muscular, quando eu chegava em casa à noite, nem beijinho tinha. Chegava tarde, tão cansado... Só nos víamos no fim de semana. Foi um período difícil, até que, em 1971, joguei meu primeiro campeonato juvenil. E, no mesmo ano, com o time do Flamengo cheio de problemas, o técnico Fleitas Solich me levou para jogar no time profissional. Eu jogava de centroavante. Fiz gols, mas meu rendimento não era o que eu queria.
Aí começou o episódio da sua grande decepção no futebol?
Acabei convocado para a seleção pré-olímpica e ganhamos. Fiz o gol que classificou o Brasil. Mas houve uma grande mudança no Flamengo. O Solich saiu, entrou o Zagallo. E ele me chamou e disse que achava que eu tinha sido lançado prematuramente e não contaria comigo. Mas que eu podia continuar treinando. Eu tinha contrato de gaveta, nem profissional era. Mas eu tinha que cumprir. Durante um mês ou dois, se eu treinei cinco vezes, foi muito. Eu ia para a Gávea, trocava de roupa, sentava no banco e via o pessoal treinar. Se faltasse alguém, chamavam. Nem treino físico eu fazia. Acho que falaram isso para o Antoninho (técnico da seleção brasileira olímpica). Ele foi falar comigo que eu precisava jogar. Como ia começar o campeonato juvenil, eu pedi para jogar. Fiz gol pra cacete. E entrava algumas vezes no time profissional. Veio a lista olímpica, e meu nome não estava. Eu fiquei desesperado. Falei para o meu pai que não queria mais jogar futebol.
Você relaciona isso ao episódio da prisão do seu irmão pela ditadura?
Não acho que seja isso. Acho que meu caso foi diferente. Se fosse isso, eu nem teria ido ao Pré-Olímpico. Talvez a não ida do Edu para a Copa do Mundo de 1970... Talvez ele tenha sido mais prejudicado do que eu. O incidente foi em 1968 ou 1969. Eu era muito pequeno e soube dos detalhes tempos depois. Meu irmão foi preso, depois de ser vigiado, dentro da casa da família do Custódio (Coimbra, fotógrafo do GLOBO, primo de Zico). Cecília (também prima de Zico e irmã de Custódio, e hoje ativista do grupo Tortura Nunca Mais) foi namorada de um rapaz chamado Novaes, que era da UNE. Todos eram muito amigos, sempre se encontravam, e os caras vigiavam. O Nando era motorista de táxi, e a mãe do Custódio, minha tia, passou mal. Pediram para levá-la ao médico, e isso acabou juntando todo mundo. Acharam que era uma reunião. Invadiram e levaram todo mundo. Ficaram em casa somente minha tia e o Custódio, que era pequeno. Ficamos sem saber onde ele estava. Por sorte, um amigo lá de Quintino era sargento da Polícia do Exército. Nessa época, o Edu e o Antunes já estavam na mídia. Os caras viram quem era e perceberam que tinham pego a pessoa errada. Lembro-me do meu irmão chegando em casa desfigurado, barbudo. Meus irmãos não queriam que meus pais vissem a forma como ele estava. Meus pais não sabiam. Acho que o Edu sofreu por causa disso. Ficou um ranço.
Mas houve um problema entre seu pai e o Zagallo. Isso influenciou sua carreira?
Existia uma loja de material esportivo na Rua Marechal Floriano, que era ponto de encontro de pessoas do futebol. Um dia, o Zagallo estava lá, e meu pai cobrou dele o negócio do Edu, de 1970. A discussão teria sido por isso. Não sei se meu pai o ofendeu. Zagallo nunca falou sobre isso comigo. E acho que Zagallo teve uma atitude decente comigo. Ele foi sincero. Pode ter me atrasado um pouco, mas falou o que ele pensava, que não ia contar comigo no Flamengo. Se alguém do futebol neste país merece uma estátua é o Zagallo, é um dos grandes nomes da história do futebol brasileiro. É para ser reverenciado. Houve duas coisas dele que não concordei. Uma foi não ter levado o Edu para a Copa do Mundo, em 1970. Com todo o respeito, o Edu jogava muito mais do que o Roberto e o Dario. Mas era um direito, uma escolha dele. A outra foi em 1974, por ele não ter-me dado uma oportunidade na seleção que foi à Copa na Alemanha. Eu fui o melhor jogador do Brasileiro e não fui olhado. Quem estava na seleção não jogou o Brasileiro, o time se concentrou três meses, e ninguém prestou atenção no que estava acontecendo aqui. E eu estava surgindo, jogando pra cacete. E foram jogadores com problemas, com lesão e que não foram nem utilizados.
Olhando para trás, após tudo o que você conseguiu, faltou alguma coisa?
Faltou, claro. Em termos de futebol, faltou a Copa do Mundo.
Mas te faz falta?
Não. Não trocaria nenhum título do Flamengo por uma Copa do Mundo, ou um título do Kashima Antlers (time em que jogou no Japão). É a minha história. Foi graças a estes títulos que cheguei aonde cheguei. Se você perguntar se faltou fazer algum gol que eu gostaria de ter feito, eu digo: o gol de empate contra a Itália (na Copa de 1982). O gol que faltou foi esse. Se eu não tivesse jogado uma Copa, seria diferente. Nesse ponto, de participar, o que faltou foi jogar a Olimpíada.
O que doeu mais: a derrota para a Itália ou o pênalti perdido contra a França na Copa de 1986?
A derrota para a Itália. Embora o pênalti perdido tenha marcado mais a minha carreira. Porque o pênalti é um lance. A derrota foi de um time que tinha futebol para ser campeão. Aí dói mais. Num dia em que as coisas não funcionaram bem individualmente, fomos eliminados. O pênalti marcou, quem não tem o que falar cita o lance. Eu deveria é ter batido contra a Polônia, no jogo anterior, que já estávamos vencendo. Se eu batesse e perdesse, talvez ficasse em dúvida de bater contra a França. Mas quem batia antes? Era o Sócrates. E ele perdeu na disputa. Se eu não bato, e outro perde, iam me chamar de covarde. Só o técnico poderia dar outra ordem, mas eu tinha a confiança do Telê (Santana, treinador). E eu estava treinado, com bom aproveitamento. E na disputa por pênaltis, fui bater de novo. E tem uma coisa: o Brasil não perdeu o jogo. Empatou e perdeu na disputa de pênaltis. E lá eu fiz o meu.
Se pudesse entrar numa máquina do tempo, que momento gostaria de viver de novo?
O título brasileiro de 1987. Foi muito gostoso. Era um time experiente, juntando com uma geração que ganharia a Copa de 1994. Era um timaço, uma seleção brasileira. A gente se sentiu desafiado pelo que falaram, que era um time velho. Foi superação. Diziam que eu, Leandro, Edinho e Andrade estávamos em fim de carreira, que era time de veteranos. Eu tinha feito uma cirurgia e o médico avisou que eram os meniscos que suportavam a estabilidade. Um menisco estava com uma lesão, e ele deu um ponto. Ele disse que eu não poderia cair apoiando na perna esquerda. O ponto podia arrebentar. Só que o Zé Carlos, goleiro, vivia dizendo que ninguém ia comemorar gol com ele. Aí, no terceiro gol contra o Santa Cruz, eu fui até ele e dei um salto em cima dele. Caí apoiado no joelho. No dia seguinte, estava inchado, arrebentado, às vésperas das finais. Eu não treinava. Se passasse de 40 minutos de treino, inchava e a perna travava. Foi um sacrifício grande. Mas seria marcante aquele título. E tinha o reconhecimento da torcida. Eu saí na final, contra o Internacional, no segundo tempo. Estava um temporal, campo pesado. A gente ganhou e, de repente, pararam de gritar “é campeão” para gritar meu nome. Foi inesquecível. No dia seguinte, estava operando de novo. Não admito qualquer discussão sobre aquele título.
Pelé é o melhor de todos os tempos, Maradona se considera o melhor, Romário se põe logo atrás dos dois. Onde entra o Zico nesta história?
Eu entro como décimo (risos), se me puserem entre os dez ou 20 está bom. Sei da minha história, o que fiz. Não tem isso de melhor. O jogo é coletivo. Como eu vou me comparar com um goleiro, um zagueiro? Pelé é lenda, está acima de tudo. Reuniu todas as capacidades que um jogador pode ter: técnica, habilidade, força. E Maradona foi o melhor da minha geração. Não usava perna direita para nada. Mas ia no fundo pela ponta direita e cruzava de letra. Vai falar o quê?
Você parece bem resolvido com sua história, não se preocupa em se incluir em rankings, listas de recordes...
Quando eu estava jogando, nem pensava nisso. Queria era ganhar o jogo, ser campeão. Às vezes, o sujeito começa a querer essas marcas e, no fim da carreira, quando vai ver, que título ganhou? Só agora, no centenário do Fla-Flu, fui saber que sou artilheiro do clássico.
Como você se vê hoje? Como um técnico aguardando convite?
Hoje eu sou um avô (risos). Se aparecer uma coisa muito boa, legal, eu vou. Tem convite de todo lugar, em especial da Ásia. Mas o Iraque foi muito estressante, fui com todas as forças e me desgastei muito. Mas não descarto, não. Eu nunca aceitei ser técnico de um clube brasileiro porque eu não posso jogar contra o Flamengo. Trabalhando fora, a chance era muito pequena, só se meu time chegasse a um Mundial.
O Iraque foi sua experiência mais traumática? Você sentiu medo?
Tive medo, pânico mesmo. Ficava trancado dentro do quarto quando ia a Bagdá. Fui lá quatro vezes, você vê notícias, carro-bomba, escutava o barulho. Você sai ali, e é gente com metralhadora, tanque. As janelas eram trancadas com madeira, você não via nada. Eu passei mal algumas vezes, de ter febre. Não tinha estrutura. Para escolher jogadores, colhia informações com o treinador de goleiros, vendo alguns jogos na TV. Mas era um campeonato amador, com campos ruins. Peguei gente que já tinha ido à seleção, gente de seleções olímpicas. Eu achava que o time tinha condições. Acreditei, confiei e me dei mal. Não tivemos apoio. E tínhamos que jogar sempre fora, sem torcida. Mesmo assim, o Iraque ainda está na disputa para ir à Copa do Mundo. Tem chance.
O futebol brasileiro não é mais o melhor do mundo?
Não. Porque paramos de formar craques que decidem. O erro é na base. Está faltando gente experiente que privilegie o desenvolvimento do talento, do atleta. Gente que não fique preocupada com conquista.
No lugar do Neymar, você sairia do Brasil?
Hoje, sim. Ele está tendo dificuldade contra esquemas táticos de grandes times. Criaram uma teia de aranha, e ele não consegue se desvencilhar.
Você recuperou o prazer de torcer pelo Flamengo?
Recuperei. O que acontece é que, se estou com meu neto em casa, dou atenção. Se for decisão, eu paro. Passei poucos finais de semana com meus filhos. Agora, quero passar com meus netos. Quero brincar com eles. Mas tenho ido a alguns jogos, de preferência a lugares sem tumulto.
O que é melhor: ganhar uma estátua do Flamengo ou saber que o movimento de comemorar os seus 60 anos surgiu na torcida?
Saber que surgiu de uma manifestação popular. Até a estátua surgiu daí. Eles cobraram. Mas acho que estão é me defendendo do que aconteceu no Flamengo. O sentimento por trás é esse. E agradeço muito.
Fonte: O Globo
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